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quinta-feira, novembro 7

Alto Punk, Baixo Punk

O instituto de moda do Metropolitan Museum abre uma exposição sobre a influência do punk na alta-costura. Repetindo: influência do punk na alta-costura. Boa, não?

Anna Wintour, a mulher que inspirou a figura central do filme O Diabo Veste Pradaé uma celebridade em Nova York. Todos os anos, numa segunda-feira da primavera, Wintour, editora-chefe da Vogue, participa da abertura da exposição de moda do Metropolitan Museum of Art. Em 2008, a exposição mostrou a influência na alta-costura das roupas e uniformes dos super-heróis das historias em quadrinhos. Há dois anos, a exibição anual trouxe a beleza dramática da obra do estilista inglês Alexander McQueen, que se suicidou aos 40 anos. Sucesso estrondoso. Bateu recorde de público ao atrair mais de 600000 visitantes. Desta vez, a divisão de moda do Met saiu-se com uma opção arriscada. Resolveu beber no estilo punk.
A exposição chama-se Punk: Chaos to Couture (Punk: do Caos à Alta-Costura). Nas palavras do inglês Andrew Bolton, curador da mostra, publicadas no catálogo da exposição, a aventura é o seguinte: “Ainda que a democracia do punk esteja em oposição à autocracia da moda, designers continuam a se apropriar do vocabulário estético do punk para capturar sua rebeldia juvenil e sua força agressiva”. Em toda essa frase, deve-se prestar atenção especial bem no início, na conjunção “ainda que”.
Distribuída em sete galerias, a exposição tem cerca de 100 modelos e alguns originais dos anos 70 justapostos aos modelos de grandes estilistas – e um rosário de “ainda quês”. Ainda que haja um longo preto da Chanel todo rasgado, como manda o figurino punk, o rasgado é meticulosamente distribuído conforme o traço de Karl Lagerfeld.
Ainda que haja casaco longo de McQueen de plástico-bolha preto, pois os punks usavam plástico até de sacos de lixo, o plástico-bolha é só imitação. Ainda que haja um Versace com alfinetes de segurança expostos, tal como os punks difundiram, os alfinetes são dourados e prateados e vêm alinhados com elegante parcimônia num longo preto. Num manequim masculino, ainda que haja sangue na camisa social branca à altura do coração, o sangue da Dior é feito de delicados canutilhos vermelhos. Encerrando a exposição, um manequim em nu frontal, apenas com as costas cobertas por um Margiela de seda preta, despede-se do público mostrando o dedo médio da mão direita. Ainda que o gesto seja o mais conhecido sinal obsceno, manequim em nu frontal é mais puritano que a Vênus de Botticelli.
Diante disso tudo, ainda que a exposição tenha elegância e vitalidade, ela não funciona. Os elementos do punk estão todos lá: correntes, cadeados, alfinetes, lâminas de barbear, zíperes, coturnos, tachas, rebites. Só falta o essencial: a rebeldia. A alta-costura simplesmente não capta o ingrediente hostil e ameaçador da estética punk. A democracia do punk não funciona na autocracia da moda, ainda que o Metropolitan assim queira. O jornalista Legs McNeil, fundador da revista Punk em 1976, veículo que se tornou porta-voz do movimento em Nova York, descreve a exposição: “Não evoca o espírito de nada do que estávamos fazendo nos anos 70. Falta autenticidade. É só uma desculpa para ricos e estrelas do cinema exibirem seus novos looks e seus novos filmes. É uma fantasia masturbatória de Anna Wintour e editores da VogueA nós, os velhos punks, até dá alguma publicidade. Mas poderíamos ficar sem isso”.
Em meados dos anos 70, os filhos da classe média de Nova York e, logo depois, os filhos da classe trabalhadora de Londres, inspirados na nova música, inauguraram uma estética toda própria no vestir-se. Entre eles, o inglês John Lydon, ou Johnny Rotten, vocalista da banda Sex Pistols. Só depois é que os punks ampliaram sua expressão para outros campos, como a política. Em seu berço havia moda – ou visual, para ficar numa expressão mais aceitável para os punks -, mas a essência de sua estética sempre esteve na transgressão, na anarquia, na desconstrução. Por isso, os punks inventaram seu estilo usando materiais do lixo e, mais significativamente, símbolos da cultura de consumo. Eles – e não Andy Warhol – eram os rebeldes a debochar da massificação por trás das latas de Coca-Cola. A indústria da alta-costura, por sua própria natureza, não capta essa essência.
A exposição do Met fica em cartaz até 14 de agosto e tem todos os ingredientes para virar sucesso de público – ainda que o alto punk seja o que foi concebido nas ruas pelos jovens dos anos 70 e o baixo punk esteja, sanitarizado e liofilizado, nos salões do museu. Mas o melhor. Mesmo é a lição involuntária da exposição. Ensina que nem tudo pode ser apropriado e incorporado sem o risco de virar farsa. Há essências irredutíveis nos movimentos culturais. Ainda que seu objetivo fosse exatamente o oposto, a exposição ajuda a lembrar que autenticidade, por definição, não se fabrica. Quer dizer: Anna Wintour pode ser o diabo, mas não é punk.
Algumas fotos:

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